UPPS: DA CRÍTICA A UMA AGENDA REPUBLICANA

Favela 247 – Fundadores do Observatório de Favelas, Jaílson Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa escrevem artigo para a revista Pensar Verde sobre as UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, e suas consequências para os moradores. Eles elencam a redução do controle armado por traficantes de drogas como um dos pontos positivos das UPPs, já que a sensação de segurança aumentou e o direito de ir e vir está mais garantido. Mas eles apontam problemas como a repressão policial aos moradores, ações autoritárias de regulação dos territórios (como a proibição de festas), e principalmente a gentrificação: "Elas [as UPPs] conseguirão destruir o que o Estado nunca conseguiu fazer, muito menos o poder criminoso armado: a riqueza das experiências, da inovação, de criatividade, de construção de formas alternativas de se viver a cidade. Com isso, teremos uma cidade ainda mais marcada pela segregação, pela fragmentação e pela impessoalidade do habitar a cidade", afirmam.

Os autores defendem que se os órgãos estatais estabelecerem imediatamente as mesmas regras aplicadas aos bairros da cidade para as favelas – na construção da moradia, no licenciamento e na legalização dos negócios e na cobrança de impostos –, e se as empresas públicas e privadas cobrarem as mesmas tarifas cobradas no conjunto da cidade, o processo de "remoções invisível" se acelerará, mudando radicalmente o perfil das favelas, com a substituição dos mais pobres por moradores com maior padrão aquisitivo. Segundo Souza e Barbosa, é necessário construir processos progressivos para a proteção dos moradores sem condições de cumprir as regras formais imediatamente, como se deve elaborar propostas tributárias especiais para os empreendedores locais, estimulando assim a geração de trabalho.

Leia abaixo ao artigo na íntegra:

Por *Jaílson Souza e Silva e **Jorge Luiz Barbosa, para a revista Pensar Verde

O futuro das comunidades populares após a UPP: por agenda republicana nas favelas

As favelas são recorrentemente representadas de maneira banal, sobretudo a partir de definições que levam em conta apenas suas carências e ausências. Tais definições caracterizam- se por vários aspectos: pela irregularidade fundiária e/ou urbanística; pela deficiência da infraestrutura; pela ocupação de áreas sujeitas a alagamentos, deslizamentos ou outros tipos de risco; pelos altos níveis de densidade dos assentamentos e das edificações combinados à precariedade construtiva das unidades habitacionais; além da insuficiência dos serviços públicos em geral, principalmente os de saneamento, educação e saúde.

Não fossem suficientes os estereótipos recorrentemente marcadores das favelas, outro estigma passou a marcar as favelas, notadamente a partir da década de 1980, no cenário urbano: a criminalidade violenta.

Na verdade, a escalada da violência nas favelas deriva da incapacidade do Estado de garantir sua presença permanente e soberana nesses territórios, permitindo que grupos armados construam seu domínio por meio do emprego do terror e da violência, tornando as comunidades populares cada vez mais expostas à violação de seus direitos.

Por outro lado, a ação das forças policias nas favelas foi marcada por uma lógica bélica de enfrentamento. A política de repressão aos traficantes varejistas das favelas se tornou o eixo central de combate à criminalidade violenta. Nesse processo, os homicídios mais que triplicaram – eram 15 mil há menos de 30 anos e já chegaram a 50 mil - aumentou a corrupção policial e do sistema judiciário; o uso de armas de alto calibre se multiplicou; a sensação de insegurança em toda a cidade se difundiu, assim como situação de violência contra os moradores de favelas; e, acima de tudo, consolidou-se o controle territorial desses espaços por parte de grupos criminosos.

O ponto culminante da desastrosa política de segurança do Estado foi a ação no Complexo do Alemão, em junho de 2007. Na invasão policial, determinada a reprimir o tráfico de drogas, foram mortas oficialmente 19 pessoas, além de dezenas de feridos e um grande número de violações de direitos.

Depois deste fracasso evidenciado, o Governo do Estado do Rio de Janeiro criou, no segundo semestre de 2008, as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs. A primeira delas foi localizada na Favela Santa Marta, em Botafogo, posteriormente em outras favelas da Zona Sul: Tabajaras, Cabritos; Chapéu Mangueira; Babilônia; Cantagalo; Pavão-Pavãozinho. A favela do Batan, em função do impacto da tortura aos jornalistas por milicianos, e a Cidade de Deus em Jacarepaguá, foram as primeiras ocupadas em outra região da cidade. Em junho de 2010, a expansão das UPPs chegou à Grande Tijuca: Borel; Formiga; Chácara do Céu; Turano; Salgueiro e Andaraí. Recentemente, favelas do Complexo do Alemão, Jacarezinho, Mangueira, Caju, Barreira do Vasco e Manguinhos também receberam as instalações de UPPs.

Tendo como referência a experiência de policiamento comunitário nos EUA (sendo Boston a principal), Medellín e Bogotá, entre outras, que deram respostas consideradas como mais efetivas à questão da criminalidade violenta, as unidades pacificadoras são, na verdade, a expressão da ordem estatal nas favelas, sob a primazia do poder policial. Há, evidentemente, o sentimento de que a paz se faz presente nas comunidades populares, tendo em vista a redução do confronto que a própria polícia alimentava e da disputa territorial entre facções criminosas rivais. A eliminação do armamento ostensivo é outro fator que auxilia no sentimento de pacificação, do mesmo modo que a ampliação do direito de ir e vir dos moradores. De fato, a ocupação policial permitiu que os moradores das favelas tenham acesso a um direito básico para seu cotidiano; a segurança de que não terão a sua morada invadida pela violência e sua vida regulada pelo poder autoritário de um criminoso.

É nesse sentido que a aprovação das UPPs tem sido significativa, tanto diante dos grupos dominantes da cidade, como também entre os grupos populares. Há, evidentemente, diversas críticas por parte de movimentos sociais e de grupos comunitários, sobretudo em função do relacionamento cotidiano dos policiais com os moradores – em especial os jovens – no que diz respeito às abordagens constrangedoras e intimidadoras, no seu limite, violentamente arbitrárias (vide o caso do Amarildo na Rocinha e de outros moradores de favelas), além de ações autoritárias de regulação do território (proibição da realização de encontros, bailes e festas, notadamente vinculadas ao Funk). Mesmo considerando os conflitos e as contradições que se fazem presentes com a implantação das Unidades Pacificadoras, a estratégia de policiamento comunitário com a presença permanente no território é um dos caminhos de superação da crise de segurança no Rio de Janeiro.

Todavia, é necessário reconhecer a legitimidade das favelas como espaços específicos de constituição da cidade do Rio de Janeiro para que ações de segurança sejam acompanhadas de políticas de direitos sociais, econômicos e ambientais. Portanto, se faz necessário eliminar as fronteiras simbólicas e físicas que se apresentam entre favelas e os bairros de seu entorno geográfico. Essa superação precisa ser profunda para a construção de sociabilidades inovadoras e para a garantia de uma cidadania plena para os moradores das favelas.

A proposição defendida se reveste de importância pelo fato de as UPPs terem sido instaladas, em geral, em comunidades localizadas em bairros mais valorizados pelo capital imobiliário. Setor empresarial que não conseguiu avançar sobre os espaços constituídos pelas favelas exatamente pela fragilidade das relações formais e pela presença dos grupos armados como forças reguladoras da ordem de exceção. Sem esses limites esses territórios se tornariam, com certeza, abertos à logica do mercado que não se caracteriza pelo compromisso com a morada dos cidadãos, mas com a transformação do espaço em mercadoria, e, no caso das áreas nobres, em mercadorias de distinção social.

Se as forças sociais, em particular as estatais, não reconhecerem o pressuposto das comunidades com espaço coletivo de morada. Se as favelas forem vistas apenas como espaços residenciais de indivíduos, que não se vinculam com o seu território; se o mercado tiver o direito de agir livremente nesses espaços, regulando-os através não mais da força das armas, mas da força do dinheiro; nesse caso, as UPPs terão se revelado como o “Cavalo de Troia” das favelas, especialmente nas áreas mais valorizadas da cidade. Elas conseguirão destruir o que o Estado nunca conseguiu fazer, muito menos o poder criminoso armado: a riqueza das experiências, da inovação, de criatividade, de construção de formas alternativas de se viver a cidade. Com isso, teremos uma cidade ainda mais marcada pela segregação, pela fragmentação e pela impessoalidade do habitar a cidade.

Isso será perfeitamente possível se os órgãos estatais se acharem no direito de, agora que o poder das armas foi eliminado, estabelecer, de modo imediatamente arbitrário, as mesmas regras dos bairros da cidade para as favelas – na construção da moradia, no licenciamento e na legalização dos negócios e na cobrança de impostos – e/ou se as empresas públicas e privadas se sentirem no direito de cobrar as mesmas tarifas cobradas no conjunto da cidade. Teremos como resultado as chamadas remoções “invisíveis”, que ocorrerão em grandes proporções. E, isto acontecendo, a tendência é uma mudança radical no perfil social das comunidades, com a substituição dos mais pobres por moradores com maior padrão aquisitivo.

A medida preventiva, para evitar a situação acima descrita, é a construção de processos progressivos e focalizados, que se articulem com ações de proteção dos moradores sem condições de cumprir as regras formais imediatamente. Cabe, nesse sentido, a construção de diagnósticos profundos sobre as populações das favelas, de modo tal que seja possível criar subsídios, de variadas ordens, para aqueles que efetivamente necessitam de um apoio regular de políticas sociais para permanecerem na comunidade. Do mesmo modo, cabe avançar na elaboração de propostas criativas do ponto de vista tributário para empreendedores locais, de modo a se estimular um ciclo virtuoso de geração de trabalho. Assim como são igualmente necessárias políticas consistentes e duradouras de educação, de saúde, de qualificação ambiental e de cultura, que reconheçam os moradores das favelas como sujeitos direitos, superando o seu tratamento recorrente como objetos e/ ou consumidores de programas governamentais e projetos de “responsabilidade empresarial”.

Estamos diante de uma agenda republicana para profundas mudanças no ordenamento territorial em espaços importantes da urbe. Cabe ao poder público, às organizações da sociedade civil e aos moradores das comunidades populares a articulação necessária para sua construção duradoura, para sua efetivação socialmente democrática e, fundamentalmente, para a sua apropriação política pelo conjunto de cidadãos das favelas cariocas.

* Jaílson de Souza e Silva tem graduação em Geografia pela UFRJ (1984), mestrado em Educação pela PUC-RJ (1994), doutorado em Sociologia da Educação pela PUC (1999) e pós-doutorado pelo John Jay College of Criminal Justice - City University of New York. Professor associado da Universidade Federal Fluminense, fundou o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, foi Secretário de Educação de Nova Iguaçu e Subsecretário Executivo da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

* Jorge Luiz Barbosa é diretor do Observatório de Favelas e Professor da Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutor em Geografia Humana, Universidade de Barcelona (Espanha) – 2008/ 2009. Doutor em Geografia Humana; Universidade de São Paulo (Brasil) - 1998/ 2002. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq. 2007/ 2013.

 

Fonte: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/131460/UPPs-da-cr%C3%ADtica-a-uma-agenda-republicana.htm

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